Semana passada, São Paulo, apesar de toda fama de que não pode parar, parou. E não foi num congestionamento. Parou para discutir o caso do marreco Quércia e sua marreca Amélia, presos e engaiolados durante 24 horas sob a acusação de poluírem o meio ambiente. Diante do fato eu fico aqui pensando que os paulistas já devem ter resolvido todos os seus grandes problemas urbanos. Sim, claro: quando um povo começa a prender marrecos é porque não tem mais nada para fazer.
O marreco Quércia - deixa-me explicar - ganha a vida honestamente como relações-públicas da casa Agro Dora, na Rua da Consolação, 208. Em seu trabalho passa os dias inteiros circulando pela calçada e atraindo fregueses para a loja. Na segunda-feira o gerente da loja foi surpreendido com a presença de um fiscal, que muito compenetrado perguntou se o marreco era de sua propriedade. Diante da resposta positiva, virou-se para o gerente e pediu:
"Seus documentos?". Leu atentamente um por um, devolveu-os e disse: "Agora deixe-me ver os documentos do marreco".
- O marreco não tem documentos - respondeu o gerente.
- Nenhum? Nem título de eleitor? Certificado de reservista? Nada? Então eu acho que vou ter que prender o seu marreco.
- O senhor não pode fazer uma coisa dessas - ponderou o gerente. - Não há nenhuma lei que obrigue marrecos a ter documento.
- Não há? - desconfiou o fiscal. - Então espere um momentinho.
Foi ao telefone e ligou para o chefe da repartição: "Alô, chefe? Encontrei um marreco passeando pela rua sem documento".
- Que está esperando? - vociferou o chefe. - Prenda-o por vadiagem.
- Mas, chefe, é um marreco. Precisamos de uma lei para enquadrá-lo. O senhor sabe qual é o número dessa lei?
- Não tenho a menor ideia.
- Então pergunta se alguém aí sabe.
- Alguém aí sabe - perguntou o chefe, voltando-se para os funcionários da repartição - quais são os documentos que um marreco necessita para transitar livremente pelas ruas?
Não. Ninguém sabia. O chefe então sugeriu que o fiscal procurasse outro motivo para prender o marreco. "Mas que motivo?", perguntou o fiscal, que era meio duro de imaginação.
- O marreco está nu? - Indagou o chefe. - Então prenda-o por atentado ao pudor.
O fiscal parou um pouco, pensou e não se lembrou de ter visto jamais um marreco vestido. Não, essa era demais. O chefe, já pensando no almoço de domingo, insistiu: "O marreco está parado em cima da calçada?".
- Está.
- Então prenda-o por estacionar em local proibido.
"Boa ideia", pensou o fiscal. Voltou ao gerente, que estava parado na calçada ao lado do marreco, disfarçou, disse que iria perdoar, disse que iria perdoar a falta de documentos, "mas infelizmente tenho que levar o seu marreco por estar parado em local não permitido".
- Esta certo - concordou, irritado, o gerente -, mas então chama o guincho.
- Pra que guincho?
- Meu marreco só sai daqui rebocado.
Formou-se a maior confusão em torno do marreco. O fiscal querendo levá-lo de qualquer maneira, e o gerente, apoiado por dezenas de populares, defendendo a inocência do marreco. Nisso, chegou um segundo fiscal pouquinha coisa mais inteligente que o primeiro e decretou: "O marreco não pode ficar solto, é um agente da poluição".
- Agente de quem? - espantou-se um balconista da loja. - Garanto que não.
O Quércia trabalha aqui há mais de dois anos.
- E daí? - interveio um popular que estava do lado do fiscal. - Ele pode ter dois empregos. Vai ver que quando sai daqui faz um bico em alguma agência.
- E você acha que o marreco, com esse bico, ainda precisa fazer outro?
- A acusação é injusta - interrompeu o gerente -, o marreco não pode ser acusado de poluir. Se eu tivesse aqui um elefante soltando fumaça pela tromba está certo, mas o Quércia nem fuma.
- Não interessa - afirmou o segundo fiscal, meio agressivo -, isso o senhor explica lá para o chefe.
O marreco entrou na sede da Administração Regional da Sé cheia de ginga.
Imediatamente o chefe destacou um funcionário para qualificá-lo: nome, endereço, estado civil, essas coisas.
De gravata e camisa de manga curta, o burocrata sentou-se à máquina e começou: "Nome?". O gerente com o marreco no colo respondeu: "Quércia".
- Quércia de quê?
- De nada.
- Como de nada? Ele não tem família?
- Tem. É da família dos anatídeos.
- Então - prosseguiu o funcionário batendo na máquina -, Quércia Anatídeo.
Terminada a ficha o burocrata abriu uma gaveta e, enquanto procurava o material para tirar as impressões digitais, disse ao gerente:
- Me dá aí o polegar do marreco.
- O marreco não tem polegar - desculpou-se o gerente.
- Não? - disse o funcionário já contrariado porque não encontrava as almofadas para carimbos. - Então me dá o indicador.
- O marreco também não tem indicador.
- E o anular, tem?
- Também não, senhor.
- Poxa - chateou-se o burocrata -, então me dá aí qualquer dedo que estiver sobrando.
O gerente precisou explicar que marreco não tinha dedo. Tinha pata. Ainda assim o funcionário já meio perturbado entendeu que o gerente se referia à companheira do marreco e perguntou: "Uma pata?".
- Não. Duas.
- E ele vive bem com as duas?
Custou pouco para desfazer a confusão. Encerrada essa fase, o funcionário encaminhou-se para outra sala, onde o marreco teria que tirar umas fotos três por quatro de identificação.
O fotógrafo, repetindo gestos tão automáticos quanto a máquina, mandou o marreco subir na cadeira, esticar bem o pescoço, olhar para a frente e não se mexer. O marreco, mesmo sem entender nada, seguiu as instruções do fotógrafo. Quando enfiou a cabeça por debaixo do pano preto - a máquina era daquelas antigas -, observou pelo visor que alguma coisa estava errada. Tornou a levantar a cabeça e indagou do funcionário: "Nós vamos fotografá-lo assim?.
- Assim como? - indagou o funcionário sem entender.
- Sem gravata?
- Não sei - disse o funcionário meio reticente -, mas eu acho que marreco não precisa botar gravata.
- Acho melhor botar uma gravata nele - retrucou o fotógrafo -, você sabe como é o chefe: já disse que foto só de gravata.
O funcionário tirou sua gravata, pediu um paletó emprestado a um datilógrafo, tiraram as fotos necessárias e depois engaiolaram o marreco. E não é que no dia seguinte a poluição em São Paulo diminuiu sensivelmente...
(Fonte: Novaes, C.E. A cadeira do dentista e outras crônicas.
São Paulo: Ática, 1996. p. 77-81.)
Bom trabalho amiguinhos!
Já abraçou hoje quem cuida de você?
Gostei muito da historinha
ResponderExcluirQuem poderia ser o narrador
ResponderExcluirNão identificado
ExcluirQual seria o momento que corresponde a complicacao e o desgecho
ResponderExcluirAdorei essa história
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