CRÔNICAS INFANTIS - MINHA VIDA DE CÃO
(Ariane
Bomgosto)
Pela
frestinha da janela posso ver o sol entrar. Sinal que já é de
manhã. Pior.
Sinal que é hora de acordar. Não é que eu tenha
os outros trezentos e poucos dias que se
passaram desde que vim ao
mundo junto com os meus outros doze irmãozinhos, será
mais um
dia de sono, até que este mesmo sol, que vejo raiar agora, faça o
favor
de ir embora. Só nesta hora, enfim, poderei sair para passear,
como também já é
de costume.
Minha orelha
esquerda levantou. Opa. Esta é a prova definitiva de
que o relógio está
marcando exatamente sete horas da manhã.
Vamos lá. Um olho de cada vez.
Primeiro o direito, lentamente.
Deste ângulo, vejo dois pezinhos pequenos
encostarem no chão.
Dois seriam se eu não tivesse esquecido mais uma vez de
abrir o
olho esquerdo. Admito. A memória não é lá o meu forte. Pois bem,
são
quatro. Agora com certeza. Os dois de mamãe e os dois de
papai. Demorei um
pouco para me acostumar a chamá-los assim,
afinal, mamãe e papai verdadeiros,
não vejo desde que eu nasci.
Eles ficaram na minha antiga casa, de onde fui
tirado quando este
casal, que agora vejo bem nitidamente, resolveu me adotar.
Eu gostava
da “casinha de sapé” – nome que eu e meus doze
irmãozinhos combinamos de chamar
àquela casinha pequenina em
que nascemos. Lá, tudo era pequenino e vivíamos
todos
amontoados, uns caindo por cima dos outros. Mas mamãe fazia
com que tudo
estivesse sempre aconchegante. Não estou
reclamando da minha casa de agora.
Aqui é bem maior e é pertinho
da praia, onde posso fazer aqueles buracos na
areia e me esconder
depois. Já não me lembro mais nem do nome, nem da carinha
daqueles doze danadinhos que nasceram junto comigo. Desta vez,
não vou por a
culpa na minha memória. É uma daquelas coisas
explicadas por essas
circunstâncias da vida que não têm explicação.
Quando saí de lá, eu só tinha
cinco dias de vida, então, dá um
desconto.
Meu nome
original - aquele que recebi quando nasci - é Joca, mas
desde que cheguei aqui,
percebi que os seres humanos demonstram
carinho com nomes terminados em “inho”.
Pois bem, passei a me
chamar Binho. A única coisa de que não gosto muito é
quando a
mamãe – essa de carne e osso – fica apertando minhas orelhas.
Fico logo bravo e mostro os dentes para ela. A outra mamãe –
aquela de pêlos como os meus – não fazia isso.
Mas o que
ainda estou fazendo aqui debaixo da cama? Me perdi
nos meus pensamentos e nem
vi a hora passar. Vou lá na cozinha
porque mamãe, como todos os dias pela
manhã, já deve ter posto o
meu leite naquela tigelinha. Exagerada como mamãe,
eu nunca vi.
Tirou uma foto minha e colou neste pratinho. Achei meio infantil.
Na verdade, acho que meu pai e minha mãe não se deram conta
que a idade
biológica de uma pessoa não corresponde à idade
biológica de um cãozinho como
eu. Portanto, com um ano e pouco,
já sou adulto.
Eles saíram,
foram trabalhar. Ainda não entendi por que os
humanos trabalham tanto. Acho que
quero ser um deles na minha
próxima encarnação. Ou melhor, não quero não. Esta
vida de
dormir, passear na praia e brincar com os meus donos é muito boa.
Se
pudesse ser outra coisa na minha próxima vida, seria um
cãozinho de novo, só
que com menos pêlos, porque estes insistem
em cair no meu rosto, e, quando
esbarram no meu focinho, me dão
vontade de espirrar.
Boa leitura amiguinhos!!!!
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