MARIA – TOUCA
TELMA GUIMARÃES
Não havia
quem não a conhecesse ou tivesse ouvido falar.
O nome era
Maria e ela era muito baixinha. Muito mesmo. Usava uns saiões rodados, sapato
tipo boneca, um batom bem cor-de-rosa e nas bochechas, um tanto assim de
carmim.
Vivia
carregando uma sombrinha florida, fizesse sol ou caísse o maior temporal.
Talvez fosse mania... Ou porque com a sombrinha conseguisse meter medo na
criançada.
Todo moleque
ou moleca que se prezasse tinha que gritar “Maria-touca” e fugir correndo.
Explico: a Maria usava um lenço na cabeça.
Era tão
amarrado que parecia uma touca. O apelido pegara de primeira e ela, que não
gostara nem um pingo, já se pusera a correr de sombrinha levantada atrás dos
malcriados. Maria-touca
não tinha profissão definida e muito menos idade. Nunca ninguém perguntara
e lá ia ela envelhecendo de saião rodado, sombrinha e touca, afora o batom
cor-de-rosa. Fazia uns bicos vendendo toalhinhas de crochê de todas as cores.
Saía depois do almoço, batendo de porta em porta, oferecendo os trabalhos:
toalhas de bandejas, toalhinhas para pão,
guardanapos, saias para liquidificador, batedeira, botijão de gás, babadores e
toucas de nenê.
Lembro-me
que eu era bem pequeno e estava na janela de casa, olhando as pessoas na rua,
quando ouvi o Dico gritando:
- Maria-touca-touca-touca-touca!
Logo,
avistei a Maria correndo, sombrinha em punho, atrás do nosso vizinho.
- Espera aí
que eu te pego, sem-vergonha!
Fiquei na
maior torcida para que ela não pegasse o Dico. Se conseguisse, ele ia apanhar
duas vezes: da Maria e da mãe dele. Mas o Dico fugira e ela teve que engolir o
apelido.
- Um dia eu
pego esses moleques! – bufava.
Mas na
verdade, nunca conseguiu pegar nenhum.
O apelido
pegou de tal maneira que, toda vez que a Maria batia às portas para vender seus
crochês, alguém gritava:
- É a
Maria-touca!
E ela ficava
furiosa, com sua sombrinha em punho.
Foi
numa tarde chuvosa em que minha mãe
tinha saído que tudo aconteceu. Eu e o meu irmão tínhamos prometido que não arredaríamos
o pé de casa até que ela chegasse. Mas ela demorou tanto pra voltar, que
resolvemos dar só uma espiada numa enorme poça d’água que se formara em frente
da nossa casa.
- Você
primeiro! – eu apontei para o meu irmão maior.
- Depois
você vem, tá? – ele entrou, de calção e tudo.
- Tá... – eu
ainda estava na dúvida.
Num minuto e
nós já estavámos nos esbaldando na água
barrenta que, para nós, era como a água cristalina do Rio do Peixe. Da cor da lama e parecidos
com porcos, ficamos ali até que ouvimos a gritaria:
-
Maria-touca! Maria-touca! Maria-touca!
Olhamos em
volta. Nada. Como não vimos ninguém, engrossamos o coro e caímos na gritaria:
-
Maria-touca! Maria-touca! Maria-touca! – Eu e o meu irmão ríamos a valer, imitando
a Maria-touca com a sombrinha.
De repente,
surgindo do nada, apareceu a sombrinha da Maria-touca... Grande e doída.
- Eram vocês, hein? Pois tomem, tomem e tomem! – ela
deitou a sombrinha pra valer.
Saímos da
poça imundos e entramos em casa, enlameando todo o tapete da sala. Atrás da
gente veio a sombrinha e segurando a sombrinha, a dona dela.
- Agora
vocês vão ver... Vou contar tudo pra vossa mãe! E tentava nos acertar com a
sombrinha.
Minha mãe
chegou em seguida. Ai! Que palmadas mais doídas!
Muito brava,
pediu mil desculpas para a dona Maria com uma das mãos e com a outra, tratava
de puxar as nossas orelhas.
Depois de um
pito enorme, nos colocou no banho e foi fazer um café para a dona Maria. Estava
tão sem graça que acabou comprando uma pilha de paninhos de crochê. Até hoje
ela diz que não sabe para que servem!
- A senhora
desculpe, dona Maria-Tou... – minha mãe quase repetiu o apelido. – Nunca mais
eles vão chamar a senhora assim. Eu prometo!
- E lhe deu
o dinheiro.
- Acho bom
mesmo! E passar muito bem! Guardou o dinheiro na sacolinha de crochê e,
sombrinha em punho, saiu em direção ao ponto de ônibus.
Minha mãe
veio até o banheiro onde a gente se lavava e até aí e que as palmadas cantaram
forte. Não ficamos sabendo se por causa da desobediência em sair de casa, se da
poça d’água, da lama no tapete da sala ou do apelido da Maria-touca.
Mas nem por
isso deixamos de repetir o apelido da Maria, toda vez que a víamos. Era muito
engraçado, divertido até, sair correndo e nos escondermos da baixinha. Um dia,
eu já estava cursando a quinta série, quando ao pegar o ônibus, sem querer
sentei-me logo atrás da Maria-touca. Não me viu. Estava bem mais velha.
Conversava com uma amiga.
- No começo
eu ficava braba de verdade. Se tinha coisa que me deixava embirrada era o
apelido de Maria-touca. Fazia um estardalhaço, saía correndo atrás daquela
molecada, dava sombrinhada até na minha sombra se fosse preciso, até que
descobri uma vantagem nisso.
Um dia,
consegui pegar um dos moleques pelas orelhas, levei o bendito
até sua casa
e o entreguei para a mãe, que passou o maior sermão.
Depois do
sermão, ofereci meus crochês. A mãe estava tão sem graça que acabou comprando
tudo. Vai ver foi uma forma de se desculpar pela falta de educação do filho.
Sabe como é, uns meninos da pá virada! Foi daí que percebi que podia aproveitar
essas situações para vender meus crochês. Olha, às vezes eu passava até fome!
- Verdade,
Maria? - a outra estava de queixo caído.
- Verdade
pura. Com este tamanho, ninguém me dava emprego, sabe como é que é. Muito
baixinha pra ficar atrás de balcão... Além de que nem sei escrever direito. Se
não tivesse aproveitado a confusão que o apelido causava, acho que estaria
morando num asilo. Naquele dia
cheguei em casa, como diz a minha mãe, com cara de quem viu “passarinho verde”.
Não contei nada a ninguém, nem ao meu irmão mais velho. Mas, na verdade, eu já
descobrira como ajudar Maria a ganhar seu dinheirinho.
Uma semana
depois, ela passou em frente de casa.
Quando a vi, gritei o mais alto que pude:
-
Maria-touca, Maria-touca, Maria-touca, Maria-mil-vezes-touca!
Minha mãe
achou que eu tinha enlouquecido. Muito brava comigo, me fez comprar, com a
minha própria mesada, umas três toalhas da dona Maria, sombrinha em punho,
pronta para me acertar.
- Desculpe o
meu filho, dona Maria... Eles cresceu mas continua sem-educação! Prometo que
ele não vai mais chamar a senhora assim!
- Tomara
mesmo! – ela abaixou a sombrinha, com uma risadinha esperta e um brilhinho no
olhar.
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O que achou da surpresa do final? Como viu,
as coisas se inverteram: o que era ruim no início, acabou se transformando em
algo bom, no fim. Brincadeiras de arreliar os outros podem ser divertidas para
a meninada. Mas às vezes têm seu lado mau: o desrespeito humano pode ferir
fundo as pessoas visadas. Felizmente, nesta alegre história, a Maria-Touca
soube “dar a volta por cima” e transformar o desrespeito à sua pessoa em fator
favorável ao seu ganho de vida. Você e
seus amigos, o que acham dessa brincadeira? Acham legal? Ou não?
Boa leitura!!!
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